Notas

Política industrial verde e o desafio do desenvolvimento no Sul Global

No centro das disputas sobre o futuro do crescimento econômico está a transição ecológica. À medida que a crise climática redefine os limites da produção e do consumo, governos e instituições multilaterais retomam um instrumento há muito marginalizado: a política industrial. No entanto, como mostra a nota técnica Política Industrial Verde e Desenvolvimento: uma perspectiva a partir do Sul Global, de Antonio Carlos Diegues e Flávio Vinícius Ferreira, pesquisadores do Instituto de Economia da Unicamp, a questão central é como essa política pode ser redesenhada para países que ainda enfrentam desigualdades estruturais profundas, restrições fiscais e dependência tecnológica. Produzido com apoio da Fundação Friedrich Ebert (FES), o estudo propõe uma leitura crítica sobre os limites do modelo atual e as condições para uma transformação produtiva compatível com os desafios ambientais e sociais do século XXI.

A retomada das políticas industriais, acelerada por crises sucessivas — da pandemia às tensões geopolíticas e à disputa por minerais críticos — recoloca o papel do Estado como coordenador da inovação e da transição verde. Em 2023, mais de 2.500 medidas de política industrial foram registradas em todo o mundo, sinalizando a convergência de agendas econômicas e climáticas. Mas, segundo o documento, a simples adoção de metas de descarbonização não basta para redefinir a trajetória de desenvolvimento das economias periféricas. Nos países do Sul Global, onde a industrialização foi incompleta e a desindustrialização ocorreu antes da consolidação de um parque produtivo diversificado, a transição verde só poderá ser viável se articular sustentabilidade ambiental, crescimento econômico e inclusão social.

A política industrial verde, nessa perspectiva, não se resume a incentivos tecnológicos ou ambientais. Trata-se de um projeto de reorganização produtiva e social que reconhece os limites planetários e a desigualdade histórica de responsabilidades entre Norte e Sul. Inspirada no princípio das Responsabilidades Comuns, porém Diferenciadas e Capacidades Respectivas, previsto na Declaração do Rio de 1992, essa abordagem reivindica o direito de países em desenvolvimento ampliarem seu “espaço de política ecológica”, com liberdade para crescer de forma sustentável, enquanto as economias avançadas assumem metas mais rigorosas de descarbonização e financiamento da transição global.

O estudo sistematiza três dimensões centrais para as políticas industriais verdes no Sul Global. A primeira, sistêmica, envolve a necessidade de enfrentar a financeirização e as restrições impostas por regras internacionais de comércio e investimento. Os autores destacam que o predomínio de fluxos financeiros de curto prazo e o domínio das cadeias globais de valor por multinacionais do Norte reduzem o espaço de manobra dos países periféricos. Para revertê-lo, propõem fortalecer bancos públicos de desenvolvimento, criar mecanismos regionais de crédito verde e negociar a flexibilização de tratados que limitam subsídios e exigências de conteúdo local. Também sugerem formas inovadoras de cooperação, como fundos multilaterais, green debt swaps e acordos Sul–Sul voltados à pesquisa e inovação tecnológica.

A segunda dimensão diz respeito ao crescimento verde, orientado pelo desacoplamento entre produção e uso intensivo de recursos. A superação do “lock-in de carbono” — a dependência estrutural de setores baseados em combustíveis fósseis — requer incentivos fiscais e tecnológicos para o desenvolvimento de energias renováveis, cadeias produtivas circulares e padrões de consumo sustentáveis. Políticas de tributação diferenciada, fomento à economia da reciclagem e proibição gradual de tecnologias ineficientes compõem o arsenal necessário para transformar a base produtiva sem comprometer o crescimento. Essa agenda, contudo, só ganha legitimidade se for acompanhada por medidas redistributivas que garantam justiça climática e social.

A terceira dimensão, mais diretamente ligada à realidade do Sul Global, é a acoplagem entre redução da heterogeneidade estrutural e crescimento justo. As desigualdades de renda, gênero, raça e território impõem limites à transição verde, pois restringem o apoio social e político a políticas ambientais mais ambiciosas. Para os autores, o sucesso de uma política industrial verde dependerá da capacidade de criar empregos qualificados, apoiar pequenas e médias empresas na adoção de tecnologias limpas e ampliar o acesso de populações vulneráveis a energias renováveis e bens eficientes. A transição ecológica, nesse sentido, precisa ser um projeto de cidadania e não apenas de competitividade.

A nota também chama atenção para os riscos de uma “dependência verde” — cenário em que o Sul reproduz seu papel histórico de exportador de insumos e matérias-primas, agora sob a roupagem de minerais críticos indispensáveis à transição energética. Sem políticas de conteúdo local, transferência tecnológica e cooperação regional, a nova corrida por lítio, cobalto e terras raras pode reatualizar velhos padrões de especialização e desigualdade. Evitar essa armadilha exige, segundo os autores, um esforço coordenado de aprendizado institucional e inovação endógena, capaz de sustentar um modelo de desenvolvimento que não apenas mitigue emissões, mas também distribua seus benefícios de forma equitativa.

Ao longo do documento, Diegues e Ferreira articulam referências clássicas do pensamento desenvolvimentista — como Celso Furtado e Raul Prebisch — a debates contemporâneos sobre transição verde, missão pública e coordenação estatal. O resultado é uma reflexão que recoloca a política industrial como eixo de um novo paradigma: o de uma industrialização orientada à provisão de bens públicos, à justiça social e à sustentabilidade ecológica. A política industrial verde, vista sob essa ótica, deixa de ser apenas um instrumento de mitigação climática e torna-se parte de um projeto político de transformação estrutural, em que soberania produtiva, inovação tecnológica e equidade social são dimensões inseparáveis.

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