No debate sobre desigualdade no Brasil, poucos temas são tão incômodos e, ao mesmo tempo, tão centrais quanto a estrutura do sistema tributário. O episódio #77 do podcast É da Sua Conta, produzido pela Tax Justice Network, aborda de forma direta o que especialistas chamam de “elefante na sala”: um modelo de cobrança de impostos que pune a maioria da população, alivia os mais ricos e perpetua desigualdades históricas de renda, gênero e raça.
A proposta em discussão no Congresso, o Projeto de Lei 1087, reacendeu a discussão sobre justiça fiscal. O texto prevê isentar do Imposto de Renda trabalhadores com rendimentos de até R$ 5 mil por mês, reduzir a carga para quem ganha até R$ 7 mil e, pela primeira vez em décadas, criar uma alíquota mínima de 10% sobre rendas mensais acima de R$ 50 mil. A medida atingiria cerca de 141 mil contribuintes — apenas 0,13% da população brasileira —, mas capazes de custear a desoneração de milhões de pessoas.
Atualmente, quem está nesse topo da pirâmide paga em média 2,5% de imposto efetivo, enquanto trabalhadores da classe média, com rendimentos em torno de R$ 20 mil, chegam a contribuir com alíquotas próximas de 15%. A distorção revela a fragilidade de um sistema que se apoia excessivamente em tributos sobre o consumo, recai sobre a população de baixa renda e permite que fortunas e grandes patrimônios escapem quase intocados.
Um dado citado no episódio ajuda a dimensionar o problema: o Brasil é a única grande economia do mundo que não tributa lucros e dividendos. Essa escolha coloca o país ao lado de paraísos fiscais como Mônaco e Emirados Árabes Unidos, em contraste com economias liberais como os Estados Unidos, onde a alíquota efetiva sobre os mais ricos chega a 36%. A ausência dessa tributação amplia a concentração de renda. Estudo recente realizado pela Receita Federal e pelo Observatório da Tributação da União Europeia mostrou que o 1% mais rico concentra 27% da renda nacional, um índice que coloca o Brasil entre os países mais desiguais do mundo.
Os efeitos desse modelo não são apenas econômicos. Como lembrou a pesquisadora Carolina Gonçalves, da Oxfam Brasil, a carga tributária brasileira agrava desigualdades estruturais de raça e gênero. Mulheres negras, que gastam proporcionalmente mais de sua renda em consumo básico, acabam arcando com parte desproporcional da arrecadação. O sistema também perpetua privilégios de herança: 63% dos bilionários brasileiros herdaram suas fortunas, segundo dados da Oxfam, enquanto o imposto sobre sucessões permanece entre os mais baixos do mundo.
Para Florencia Lorenzo, da Tax Justice Network, e Eliane Barbosa da Conceição, do Ministério da Igualdade Racial e integrante da Plataforma Justa, a discussão sobre tributação é inseparável da história de exclusão no Brasil. Desde a escravidão e o pós-abolição, a ausência de políticas redistributivas deixou a população negra e indígena em desvantagem estrutural. Ao evitar enfrentar privilégios de elites econômicas, o sistema tributário reforçou desigualdades em vez de corrigi-las.
Além do diagnóstico, o episódio do É da Sua Conta destacou movimentos que buscam alterar esse cenário. Campanhas como Justiça Tributária Já e Imposto Zero defendem o avanço do PL 1087, mesmo reconhecendo que ele não resolve todos os problemas. Já o Plebiscito Popular por um Brasil Mais Justo, organizado por movimentos sociais, partidos e entidades civis, busca envolver a população diretamente, coletando votos sobre duas questões: a redução da jornada de trabalho sem perda salarial e a isenção do Imposto de Renda até R$ 5 mil.
A pressão popular tem desempenhado papel decisivo. Durante a tramitação do PL 1087, a previsão de queda da alíquota mínima sobre altas rendas só não se confirmou porque a mobilização de organizações e cidadãos tornou politicamente inviável a retirada desse ponto. O episódio ilustra como a disputa em torno da justiça fiscal não se limita a cálculos técnicos, mas envolve escolhas políticas e sociais sobre quem deve sustentar o Estado.
Se aprovado, o projeto representará um passo importante, mas ainda insuficiente. Continuarão de fora questões como a correção da tabela do Imposto de Renda, a revisão de benefícios fiscais que favorecem grandes empresas e a tributação mais robusta sobre patrimônio e herança. Para especialistas, essas medidas são fundamentais se o objetivo for reduzir desigualdades de forma consistente e aproximar o Brasil das práticas internacionais.
A justiça tributária é um tema que atravessa a forma como o país distribui oportunidades, garante serviços públicos e enfrenta desigualdades históricas. O “elefante na sala” permanece, mas a discussão ganha novos contornos com a mobilização popular e a pressão sobre o Congresso. O episódio #77 do É da Sua Conta mostra que encarar esse problema é urgente se o Brasil quiser se tornar uma sociedade mais justa e menos desigual.
O episódio completo está disponível no site da Tax Justice Network e pode ser ouvido no player abaixo.