Por Fernando Machado*
Em maio de 2025, o governo federal editou a Medida Provisória (MP) nº 1.300, apresentada como modernização do setor elétrico. Apesar de seu impacto potencial, a proposta vem sendo pouco debatida e seus efeitos sobre a estrutura do setor e os consumidores subestimados. A MP tem três eixos: (i) reformulação da Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE), (ii) abertura total do mercado, permitindo a escolha do fornecedor e negociação direta de contratos e (iii) reconfiguração de encargos setoriais e subsídios.
O primeiro eixo propõe gratuidade de até 80 kWh/mês para famílias do CadÚnico — limite insuficiente para garantir bem-estar mínimo. O benefício será financiado por encargos repassados aos demais consumidores, incluindo pequenos comerciantes, classe média e a população de baixa renda fora do CadÚnico. O terceiro eixo redefine a alocação de encargos e subsídios, e é o mais vulnerável a pressões de lobbies no Congresso.
O segundo eixo — a abertura do mercado — representa a alteração mais estrutural do modelo setorial. A proposta incorre no clássico erro de importar modelos estrangeiros sem considerar as especificidades do sistema elétrico brasileiro, cuja operação é centralizada e baseada na complementaridade entre as fontes de geração. Nesse arranjo, a ideia de “escolha” do fornecedor é ilusória: a energia não tem marca, e o consumidor segue dependente de uma infraestrutura que opera de forma integrada e cooperativa — agora com mais intermediários lucrando.
O discurso da concorrência, apresentado como panaceia, oculta o real objetivo da proposta: ampliar a liquidez e atratividade do mercado para grandes grupos econômicos. Hoje, cerca de 40% da energia já circula no mercado livre, atualmente voltado a grandes consumidores. Nesse ambiente, o volume de energia transacionada foi 5,6 vezes superior ao volume efetivamente consumido em 2024. Instituições como BTG e Itaú e grandes geradores dominam a comercialização, onde a energia é tratada como commodity. A MP intensifica essa mercantilização e aprofunda a financeirização do setor, tornando a energia um ativo especulativo sujeito a riscos sistêmicos semelhantes aos que causaram crises financeiras como a do subprime.
A abertura do mercado implica a adoção de um preço de referência baseado no custo marginal da usina mais cara em operação, o que acentua a volatilidade dos preços de energia elétrica negociados, repassada aos consumidores, inclusive residenciais, especialmente em contextos de escassez ou crise. Isso é particularmente crítico para o Brasil, onde o custo marginal apresenta grande volatilidade, chegando a variar mais de 300% em questão de horas ou 1.100% em um intervalo de semanas. A dinâmica introduzida pela abertura amplia a exposição dos consumidores residenciais à volatilidade dos preços.
Como agravante, a proposta ignora desafios imediatos da transição, e segue sem antes definir regras, incentivos, responsabilidades ou medidas de mitigação. Entre as principais indefinições estão: Quais serão os mecanismos de compensação para as distorções dos contratos legados entre os ambientes de contratação? Haverá algum tipo de compensação ou cobertura para os consumidores residenciais, dado que os últimos a migrar poderão assumir custos desproporcionais? Como se dará o financiamento dos novos mecanismos de capacidade, que inevitavelmente introduzirão uma nova camada de custos nas tarifas? Quem pagará pelo supridor de última instância? Que garantias ele oferecerá? Apesar dessas incertezas, o governo propõe uma abertura abrupta, com implementação prevista para 2026 e 2027. A resposta oculta sobre quem arcará com os ônus desse processo está clara: o consumidor.
A Medida Provisória nº 1.300 representa a etapa final de um processo de liberalização iniciado nos anos 1990, brevemente interrompido após o colapso do modelo durante a crise do apagão de 2001. Em resposta àquela crise, o país remodelou parcialmente sua política energética com base em leilões públicos, planejamento estatal, forte presença da Eletrobras (pública) nos investimentos e financiamentos subsidiados via BNDES. Esse arranjo institucional garantiu a expansão da oferta ao longo da década seguinte, mas sem romper com os fundamentos mercantilizantes herdados dos anos 1990. Assim, preservaram-se as bases da liberalização, enquanto se expandia a participação privada no setor. Passado o período de estagnação da demanda entre 2015 e 2022, que mascarou desequilíbrios estruturais, estes agora se tornam mais evidentes e críticos diante da tímida retomada do consumo e da entrada descoordenada de fontes intermitentes, ampliando o risco de desequilíbrios sistêmicos.
Após avalizar a criminosa privatização da Eletrobras — abrindo mão do principal agente estatal de promoção de políticas públicas no setor— o governo Lula agora dá continuidade, por meio da MP 1.300, à agenda de reformas neoliberais que os governos Temer e Bolsonaro tentaram, sem sucesso, implementar. Ao consolidar uma agenda ideológica que enfraquece o papel estatal e amplia o domínio de grandes conglomerados econômicos sobre um setor estratégico, a medida impõe uma inflexão cujos efeitos devem recair sobre os consumidores: tarifas mais elevadas, maior volatilidade e aprofundamento das desigualdades no acesso à energia elétrica.
*Mestre em Economia pela Unicamp e Diretor do Sindecon-RJ