Por Cyro Faccin e Bruno de Conti
O último dia 18 de setembro foi marcante para as economias ao redor do mundo. No que é um momento catártico para alguns economistas e financistas, a data foi marcada pela famigerada Superquarta. Este é o nome dado ao dia em que Comitês do Federal Reserve estadunidense (FED) e do Banco Central brasileiro (BCB) decidem suas taxas básicas de juros, assim como pautas e práticas de suas respectivas políticas monetárias para o curto prazo, com indicativos da estratégia de médio-longo prazo. Nem toda Superquarta resulta em uma Superdecisão ou Supermudança, mas esta última requer especial destaque por sua Superinflexão.
Em sua primeira decisão de corte de juros desde a pandemia da COVID-19, o FED baixou sua taxa de empréstimo overnight em 0,50 p.p., colocando-a na faixa de 4,75% a 5,00% ao ano. O movimento busca relaxar as condições de crédito e liquidez na economia, almejando favorecer a expansão da atividade via consumo e investimento. A decisão de alterar a trajetória dos juros fundamentou-se nos dados do mercado de trabalho estadunidense, que sofreu um arrefecimento no seu ritmo de crescimento, saindo de um ganho superior a 300 mil postos de trabalho em março deste ano para 89 mil em julho (Bureau of Labor Statistics). Adicionalmente, o FOMC (Comitê de Mercado Aberto do FED) indicou que mesmo com a inflação ainda em 2,5% em agosto, pouco acima da meta de 2%, estava confiante que a tendência era de queda, dando espaço ao corte de juros.
E quanto ao Brasil? O BCB, em direção contrária à sua recente política de cortes e ao movimento estadunidense, decidiu elevar a taxa básica de juros, a Selic, em 0,25 p.p., atingindo o patamar de 10,75% ao ano. A causa? O temido risco fiscal. Antes de entrar neste bicho-papão orçamentário que sempre vai e volta, vamos nos ater a alguns dados econômicos – como, inclusive, fez o FED.
Nossa inflação? 4,24% no acumulado de 12 meses, estando assim dentro das bandas de +- 1,5% da meta inflacionária de 3,0%, além de um registro deflacionário em -0,02% em agosto. O câmbio? O dólar estadunidense chegou ao patamar de 5,45 BRL, caindo do seu pico de 5,75 no início de Agosto. Nosso mercado de trabalho? A taxa de desemprego apresenta quedas modestas de 0,1 p.p. ao mês, registrando o nível de 6,6% em Agosto, segundo a PNAD Contínua. A atividade econômica? O PIB do 2º trimestre de 2024 cresceu a 1,4% frente o trimestre anterior, mesmo contando com a queda do Agro (-2,3%), sendo principalmente puxado pela Indústria (+1,8%) na ótica da produção, e pelo Investimento (+2,1%) na ótica da despesa. Em suma, o indicativo macroeconômico doméstico é claro: há um ciclo de crescimento em curso, puxado pelo investimento, com uma melhora gradual e lenta no mercado de trabalho, que está longe do pleno emprego, um abrandamento nos índices de preços em conjunto a queda na taxa de câmbio. Este quadro favorável é resultado do prévio ciclo de cortes na Selic, que conseguiu proporcionar resultados materiais na economia. Reverter isto em favor da elevação dos juros é temerário em especial ao avaliarmos a centralidade do investimento no crescimento, notória por ser a variável mais sensível à variação das condições de crédito e liquidez da política monetária brasileira.
O que sobrou ao Banco Central do Brasil para justificar sua alta dos juros? O Risco Fiscal. Este seria derivado da expectativa negativa de investidores, residentes e não-residentes, em relação ao resultado primário da União, projetado para fechar o ano em déficit primário de R$ 28,8 bilhões segundo o Relatório Bimestral de Receitas e Despesas. Este valor corresponde ao limite da banda inferior do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), de 0,25% do PIB. Mas o que isto significa na prática? A ideia é que a “falta” de compromisso do Governo em reduzir gastos e o déficit primário pode corresponder a uma futura iliquidez da dívida, comprometendo o pagamento de juros das Dívidas Públicas do Tesouro Nacional, assim como a sua capacidade de rolagem. Portanto, a elevação da taxa básica de juros pelo BCB alinharia as expectativas de risco-retorno dos agentes em relação à remuneração da dívida pública, permitindo assim que ainda haja liquidez e demanda pelos Títulos do Governo.
Será que é tudo tão simples assim? Em termos primários, o déficit público manteve-se relativamente constante no fluxo acumulado de 12 meses, visto que de Março de 2024 a Agosto saímos de um déficit de 2,30% do PIB para 2,26%. E em termos nominais totais, quando acrescemos os gastos com o pagamento de juros? O déficit nominal saiu de 9,09% do PIB para 9,81% no mesmo período. Isto é, nesta janela o peso do pagamento de juros correspondeu a 0,76% adicionais do PIB. E mesmo assim não parece haver um temor generalizado de que esses juros sejam impossíveis de cobrir com a rolagem, certo? Na verdade, todo o terrorismo fiscal está concentrado nos gastos públicos sociais, que como demonstrado teve um peso menor na evolução da dívida pública do que os juros. Portanto, não se evidencia nesta janela temporal, concomitante aos cortes da Selic, a ocorrência de qualquer grau de iliquidez na capacidade de rolagem da dívida por conta da redução da remuneração dos títulos. Pelo contrário, a Dívida cresceu financiada pelos mesmos agentes que agora clamam pelo ciclo de alta.
Todo este contexto nos leva a uma conclusão: a decisão de elevação do juro realizada pelo Banco Central do Brasil em 18 de setembro é um ponto de superinflexão. O debate em torno da Selic está deslocado da realidade material da economia, tanto em termos domésticos quanto externos, dado os estímulos visto nos EUA, com a decisão do FED, assim como os recentes pacotes chineses de ajuda ao mercado imobiliário e bancário, que podem chegar a 1 trilhão de yuans (US$ 142 bi). Este descolamento da realidade evidencia como a decisão da autoridade monetária é, sobretudo, uma decisão política. A contínua reafirmação de um Risco Fiscal que não encontra bases materiais é uma esquizofrenia de vozes advindas do mercado, que não aceita a possibilidade de conviver com taxas menores em sua remuneração do capital financeiro. Resta ao Governo saber enfrentar os ânimos vorazes do mercado financeiro à luz da sua estratégia de desenvolvimento.